Prefácio
O termo Epidemiologia é de origem grega, significando “Estudo (logos) do que está sobre (epi) as cidades/pessoas (demos)”. O termo Epizootiologia é uma derivação deste termo, trocando as pessoas por animais (zoo). Durante este livro usarei o termo epidemiologia para me referir à disciplina como um todo e epizootiologia quando estiver-me referindo a doenças animais. Após mais de 2000 anos de Hipócrates ter deixado os primeiros registros de estudos sobre as doenças, a Epidemiologia muito evoluiu. Aquela que era antes uma área destinada a estudar doenças causadas por Ares, Águas e Lugares inadequados, que posteriormente associava doenças com miasmas ruins (no século XVII), passou a ter um “inimigo” bem definido, o agente etiológico, o parasito, agora determinado patógeno pela “Teoria dos Germes”. Esta completamente nova abordagem evoluiu durante o século passado com o auxílio das ferramentes moleculares, do computador e do sensoriamento remoto via satélite os quais foram direcionados para determinar a natureza do culpado: o parasito.
A visão da epidemiologia baseada estritamente na teoria dos germes pode ser resumida por uma figura que é usualmente chamada de “Tríade Epidemiológica” (Figura 0.1). Tal Tríade seria composta por hospedeiro, agente parasitário e ambiente, onde a interação destes atores determinaria em última instância a ocorrência ou não de doença no hospedeiro. Nesta representação há uma redução da complexidade dos ambientes naturais e dos organismos animais, no que tange à composição e diversidade da comunidade parasitária que um determinado hospedeiro alberga, bem como à importância da adequação ao ambiente e à sua sociedade animal para o bem estar do indivíduo.
A visão da epidemiologia moderna evoluiu, graças à aquisição de informações principalmente nos últimos 50 anos, para o reconhecimento da importância fundamental que a comunidade parasitária tem no estado sanitário do hospedeiro que a alberga e como o sistema imune é modificado por tal comunidade durante a ontogenia do animal. Estudos epidemioloógicos vieram gradativamente demonstrando que determinado parasita nem sempre causa doença obrigatoriamente, que muitos parasitas podem mudar para comensais e retornar ao estado parasitário, associações e competições entre parasitas ocorrem dentro do hospedeiro, parasitas modificam a resposta imune devido à sua ordem de contato com hospedeiro, a diversidade que tal hospedeiro teve contato, a idade do contato, dose infectante, e assim progressivamente, diversos aspectos surgiram como relevantes para a determinação do estabelecimento de doença ou não em tal hospedeiro. Para acomodar tal nova mentalidade epidemiológica seria mais correto representar visualmente as relações entre parasita-hospedeiro-ambiente na forma da Figura 0.2.
Além deste reconhecimento que a comunidade parasitária é relevante para o estabelecimento de uma boa saúde no hospedeiro, também cresceu a importância do ambiente para conferir tal boa saúde. É dentro da arena ambiental que dá-se a interação competitiva entre os seres vivos. A saúde de determinado indivíduo ou população é então uma resultante dos efeitos do ambiente e de sua comunidade de microbiota infectante. A interação entre todos os seres vivos dentro deste ambiente é uma força evolutiva intensa, que pode agir como modificador de saúde. Dependendo do viés de interesse da criação, seja ele doméstico, de produção, ou da conservação das espécies, a espécie que queremos que esteja em boa saúde pode variar desde plantas, insetos e moluscos, até os vertebrados, nossa principal área de interesse neste livro (resumidamente peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos, placentados ou não).
Tradicionalmente a Parasitologia estuda os helmintos e ectoparasitas, a Microbiologia as bactérias, a Virologia estuda os vírus, e assim sucessivamente. Eu assumirei uma divisão durante este livro que agrupa todos estes grupos de agentes em Macro-parasitos e Micro-parasitos; basicamente parasitos que você enxerga ou não. Isto parte de uma definição de parasito como qualquer componente da microbiota que tenha parte ou todo seu ciclo de vida dependendo de nosso hospedeiro de interesse, e que reconhece que o estado de parasito ou comensal pode ser intercambiado dependendo das condições a que tal microorganismo estiver sendo submetido.
Esta visão do parasita como um “inimigo” a ser combatido é cega para o fato de que qualquer vertebrado co-evoluiu com sua microbiota desde os primórdios evolutivos, e que muitos componentes da comunidade parasitária que o infecta são benéficos para o hospedeiro. Um vertebrado não pode ser separado artificalmente de sua microbiota. Cada animal é em si um “ônibus parasitário”, com passageiros que carreia consigo para qualquer lugar que ele vá, à revelia do meio circundante. Cada vez mais são identificados efeitos positivos para o hospedeiro associado à presença de determinados microorganismos no organismo. Qualquer herbívoro possuidor de um rúmen ou ceco fermentador é intrinsicamente dependente de sua microbiota para digestão de alimento e absorção de energia. A própria mitocôndria é um caso de parasitismo que só conferiu vantagens para a célula hospedeira e para a mitocôndria infectante. Assim, a Epizootiologia moderna tem que levar em consideração a comunidade parasitária que infecta o animal, além de apenas um microorganismo de interesse, e deve ter uma compreensão do ambiente circundante ao animal, da adequação de sua estrutura social e dos potenciais efeitos que todos estas variáveis podem ter sobre ele.