Capítulo 1 O Antropoceno e a Emergência de Doenças


“I think that what is essential for this problem is a global consciousness, a view that transcends our exclusive identifications with the generational and political groupings into which by accident we have been born.
The solutions to these problems requires a perspective that embraces the planet and the future, because we are all in this greenhouse together.”

— Carl Sagan, físico americano (depoimento no senado americano sobre causas e consequências do efeito estufa, 10/12/1985).

As palavras de Carl Sagan1 no final do século passado já antecipavam os graves efeitos ambientais resultantes da ação humana sobre o planeta Terra a partir do século XIX. O termo Antropoceno, que vem caminhando para ser oficialmente reconhecido pelas comissões científicas oficiais, foi cunhado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Química de 1995. O Antropoceno seria o tempo geológico marcado pela existência desta interferência humana marcante no planeta. O marco inicial desta era geológica ainda permanece indefinido, com propostas indo desde 10.000 anos atrás, até o momento do lançamento da primeira bomba atômica. O fato importante é que o reconhecimento inequívoco do impacto humano nos ambientes do planeta ao ponto de alterá-los completamente é crucial do ponto de vista do estudo das doenças.

Com relação a este aspecto, o marco inicial da alteração antropo-dependente da distribuição das doenças infecciosas humana e animal no planeta pode ter várias propostas. Nós podemos retornar até o início da expansão humana saindo da África, já que estes primeiros hominídeos também carreavam consigo, e permitiam a expansão geográfica, de qualquer parasita ou microbiota que eles fossem portadores. Ou podemos considerar que foi o início do domínio do fogo e da cocção dos alimentos (incluindo carne e insetos) que diminuiu tremendamente a exposição humana aos parasitas lá contidos, mas que também auxiliou a aumentar a distribuição da espécie humana no planeta. Outro marco pré-histórico a ser considerado seria a domesticação dos animais, o que favoreceu a adaptação de vários microorganismos dos animais para o homem e vice-versa. Ou podemos considerar como absolutamente relevantes marcos epidemiológicos mais recentes, como as invasões bárbaras que carrearam doenças, ou as grandes navegações, que foi o último grande intercâmbio de microbiota entre continentes na história recente do planeta Terra. Todos estes e mais foram os efeitos da espécie humana no planeta. Mas nós vamos nos limitar neste capítulo introdutório ao período dos últimos duzentos e poucos anos, desde a 1a revolução industrial.

1.1 A explosão demográfica humana.

No início do século XIX a população humana no planeta girava em torno de 1 bilhão de habitantes. Esta população, se grosseiramente dividida pelos 5 continentes, resultaria em meros 200 milhões de habitantes por continente. É como se toda a população brasileira atual estivesse distribuída por todas as Américas. Esta população era basicamente rural, distribuída esparsamente, com as cidades concentrando cerca de 10-20% da população. O nível educacional da ampla maioria era zero, com alguns beneficiados capazes de ler e escrever, e uma minoria rica tendo acesso aos colégios superiores e universidades.

Em termos de ciência biomédica, a teoria infecciosa corrente e aceita era baseada na existência de miasmas, substâncias misteriosas que afetavam ares, águas e lugares. Toda nossa produção rural ocorria de forma extensiva ou semi-extensiva, e a maioria das tentativas de aumentar a densidade de ocupação de animais de produção resultava em epidemias nestes plantéis. A produtividade de qualquer processo tecnológico era dependente da força humana (escrava ou não) e/ou animal, e invariavelmente baixa. A espécie humana comia mal e comia pouco, tinha um baixíssimo nível de higiene e regimes monárquicos dominavam boa parte dos países da época.

Entretanto, durante este século certos acontecimentos começaram a estabelecer as bases do que seria o próximo. Dois deles no nível político tecnológico foram cruciais: a primeira revolução Industrial e o início do estabelecimento dos regimes democráticos no ocidente (ambos iniciados no final do século XVIII). A gradativa substituição da mão de obra humana e animal por maquinário movido a vapor pôde incrementar a produtividade de vários processos tecnológicos à época, consequentemente aumentando a capacidade de extração de recursos naturais e minerais e da sua eventual conversão em manufaturados. Indústrias têxteis, siderúrgicas, de maquinário, químicas, todas evoluiram e se beneficiaram com a força do vapor. Os processos agropecuários também se beneficiaram com novos arados e semeadeiras, aumentando a produtividade do campo.

Também foi no final do século XIX que uma revolução na área da Medicina e da Medicina Veterinária teve lugar: o estabelecimento de um pensamento formal sobre a causa das doenças - A Teoria dos Germes. Tendo como principal criador e defensor Louis Pasteur (Francês, 1822-1895), mas apoiado de perto por cientistas na época como Robert Koch (Alemão, 1843-1910), Ferdinand Cohn (Alemão, 1828-1898), entre outros, a Teoria dos Germes criou a Microbiologia, um novo campo de estudo, ampliando e dando base para uma outra ciência, a Epidemiologia. Note-se que até este momento a Epidemiologia estudava doenças sem causa definida; a partir de então pode-se associar agentes etiológicos aos quadros mórbidos caracterizados anteriormente.

O estabelecimento de novos regimes democráticos na Europa e nas Américas, gradualmente se expandindo para outros continentes, foi fundamental para que os países com melhor organização político-estatal pudessem ter ganhos financeiros maiores e melhor investimento em ciência e tecnologia. Tal retroalimentação positiva entre sucesso econômico e re-investimento em Pesquisa e Desenvolvimento foi o que permitiu à Inglaterra até o final deste século ser a grande força Político Industrial do Ocidente, junto com outros países europeus em menor escala, como França, Alemanha e Austro-Suíça.
Na parte oriental do planeta os regimes monárquicos ainda imperaram por mais quase 100 anos, e estes países permaneceram tecnologicamente atrasados, e nenhum país conseguia rivalizar com as potências ocidentais.

1.2 As bases da globalização.

De meados do século XIX a meados do século XX outro grande salto civilizatório ocorreu na espécie humana: a segunda revolução industrial. Agora o petróleo passa a dominar as ações de avanço tecnológico: motores a explosão, plásticos e outros polímeros, além de inúmeros subprodutos da indústria petroquímica, conjuntamente com grandes descobertas tecnológicas (como a produção de aço mais fácil), modificaram o início do século XX e toda a capacidade de produção humana. Junto com o a Indústria Petrolífera, a popularização da energia elétrica e todos os equipamentos criados dela derivados também revolucionaram o comportamento humano, com a possibilidade de refrigeração, iluminação, utilização de motores elétricos, entre inúmeros outros. Veja que no início do século XX a população humana havia aumentado em 50% em 100 anos, beirando os 1,5 bilhões de habitantes no planeta. Produtos manufaturados começaram a alcançar as classes mais baixas, gerando grandes ganhos econômicos. Entretanto, as convulsões políticas do século XX também acarretaram duas guerras mundiais, a descoberta da energia e da bomba atômicas, e disputas por poder global convulsionaram grande parte do século XX.

Na Medicina Veterinária e Humana o início do século XX foi uma grande revolução, seguida ao estabelecimento da Teoria dos Germes: começamos o século com as primeiras vacinas, a caracterização dos agentes etiológicos de várias doenças, como varíola, tuberculose, Peste Bubônica, evoluímos na compreensão dos nutrientes essenciais (proteínas, gorduras, carbohidratos, vitaminas, minerais), da fisiologia básica dos vertebrados (circulação, respiração, nefrologia, todos os sistemas orgânicos foram compreendidos melhor). A metade do século que trouxera a bomba atômica em 1945 também trouxe em 1953 a elucidação da estrutura básica da molécula de DNA, por James Watson e Francis Crick, e toda a revolução genética que se seguiu. Todos os ganhos científicos acima citados e outros tiveram um efeito importante na Medicina Veterinária: nunca a espécie humana teve acesso a tanta proteína animal a preço tão baixo e com tanta qualidade. A evolução da bovinocultura de corte e leite, o avanço sólido da proteína aviária do meio do século XX em diante, o estabelecimento de uma suinocultura mais relevante, junto com outras fontes de proteína animal (pescado, outras espécies de aves, anfíbios, ovos, derivados do leite, moluscos) todos foram áreas que se beneficiaram da evolução da ciência, da parasitologia, da microbiologia e muito da biotecnologia relevante que também se estabeleceu a partir da metade do século: os antibióticos.

A primeira metade do século XX até o ano de 1971 foi pródiga em descobertas de novas classes de antibióticos - 21 delas foram descobertas. Todas, menos uma, começaram a ser usadas a partir de 1941, e durante alguns anos estiveram disponíveis apenas dentro dos círculos militares. Mas a partir da década de 1960 os antibióticos foram as estrelas da Medicina Humana e Veterinária, e largamente usados nos processos produtivos. Pela primeira vez na história da produção animal os animais podiam ser confinados em densidades maiores, aumentando proporcionalmente os ganhos do produtor e alavancando a alimentação humana. Doenças bovinas, equinas, das aves, em todos os espectros da produção animal agora podiam ser controladas graças a todas aquelas novas classes de antibióticos.

1.3 A ciência se agiganta.

O chegarmos ao fim do século XX muitas das tecnologias que o alavancaram foram colocadas em cheque e começamos um duro processo de avaliação das consequências e reavaliação do uso de várias das tecnologias que a espécie humana agora possui. A energia atômica, o modelo de transporte baseado no motor a combustão, a ética e a moral do uso das novas ferramentas genéticas, a geo-política mundial, o uso dos plásticos e polímeros derivados, a demanda crescente por energia elétrica (majoritariamente produzida por fontes não-renováveis), todas estas tecnologias vem sendo reavalidas devido às consequências graves para o ambiente do planeta que elas vêm causando. A própria base alimentar da espécie humana vem sendo questionada, além de toda do pano de fundo da revolução digital que seguiu-se à criação dos computadores também na metade do século XX. Nenhum destes fatores talvez fosse um problema neste momento se não tivessem sido multiplicados pela maior expansão demográfica da espécie humana na história registrada: chegamos ao final do século XX com 6 bilhões de habitantes planetários, um aumento de 4 vezes em 100 anos. Todas as melhorias na saúde, educação, ciência, transporte, moradia, alimentação resultaram em uma maior taxa de natalidade e, principalmente, uma menor taxa de mortalidade infantil e uma maior longevidade.

A Epidemiologia Veterinária também evoluiu nestes últimos cem anos e foi beneficiada com várias das descobertas que fizemos, principalmente a partir da descoberta e popularização do computador pessoal. Esta nova ferramenta, capaz de efetuar uma quantidade de cálculos tremendamente grande e de forma rápida, afetou diretamente a matemática, a estatística e, por conseguinte, a Epizootiologia Veterinária. Análises de Variância, que levavam em conta apenas um fator, eram realizadas na régua de cálculo, ou com uma calculadora para os afortunados. A partir do computador pudemos construir, testar e inferir muito melhor a partir de dados de epidemias, doenças e indivíduos. Conjuntamente com o início do monitoramento planetário via satélite e o sistema GPS, a Epidemiologia Espacial encontrou seu ambiente de crescimento. Um último aspecto amadureceu a Epidemiologia no final do século passado e início deste: a compreensão de que o modelo simplificado de ‘um parasito—uma doença’ era um modelo equivocado. Passamos a entender que a relação parasita-hospedeiro passa por nuances muito mais complicadas, onde sistema imune, sexo, alimentação, comportamento, idade, a própria microbiota normal residente no animal, todos são fatores relevantes para a compreensão dos mecanismos de estabelecimento de um quadro mórbido em determinado indivíduo ou população.

1.4 Um desafio para os Médicos Veterinários.

Os efeitos deletérios de toda esta evolução tecnológica e todo este crescimento demográfico começaram a serem sentidos gradualmente. Embora hoje seja aceito que a espécie humana possa ter sido um dos motivos para a extinção da mega-fauna do Eoceno (há quase 100.000 anos), assim como a primeira extinção animal inequivocamente causada pelo homem foi a do pássaro Dodô, por volta de 1662, agora a situação é mais grave. O ritmo de extinção das espécies vem acelerando desde o final do século XX, e de extinções locais nós rapidamente evoluimos para extinções globais. Este processo acelerado de perda de diversidade biológica, tem origem nos processos que aludimos anteriormente, que acarretaram destruição de ambientes naturais (substituídos por áreas de agricultura e pecuária), e uma gama de diferentes poluentes luminosos, sonoros, atmosféricos, químicos, físicos e biológicos. A alteração dos ambientes resultantes destes fatores começaram a ser associados a um fenômeno que começou a tomar forma no final do século XX: a emergência das doenças infecciosas (Cook 1992).

As doenças infecciosas emergentes são definidas como quadros mórbidos infecciosos que vem aumentando em frequência, área de ocorrência geográfica ou invadindo novos hospedeiros, causados por microorganismos novos, recém-descobertos ou mutados. Com todas os avanços da Medicina no século passado, era voz corrente entre alguns grupos que caminhávamos para a cura de todas as doenças, para a erradicação de várias, enfim para um final feliz das doenças infecciosas. A realidade mostrou-se muito mais dura e desafiante, a partir do surgimento, crescimento ou recrudescimento destas várias doenças infecciosas, cujos hospedeiros tanto podiam ser humanos, animais de produção ou selvagens. As cadeias de transmissão entre estes compartimentos de hospedeiros nunca estiveram separadas e, baseado neste conceito, nos últimos vinte anos cresceu e tomou forma o conceito de “Uma Saúde” (“One Health”), onde pretende-se abordar a saúde humana e animal de forma integrada e complementar, tanto nos aspectos de diagnóstico, tratamento, prevenção ou mitigação dos efeitos das doenças infecciosas.

Sendo assim, caro colega ou futuro colega Médico-Veterinário, espero que você tenha entendido a mensagem e não se iluda: o mundo em que você atua e vai atuar nas próximas décadas é cheio de desafios e incógnitas a serem respondidas. Um mundo onde o estudo constante para acompanhar os avanços científicos que certamente virão, extremo cuidado com a Biossegurança individual na atuação profissional e com a Biosseguridade dos processos produtivos, e por fim uma bússola ética e moral alinhada com o bom exercício da profissão. Eu espero que este livro te forneça as ferramentas básicas para cumprires com sucesso tua jornada.

References

Cook, G C. 1992. “Effect of Global Warming on the Distribution of Parasitic and Other Infectious Diseases: A Review.” Journal of the Royal Society of Medicine 85 (11): 688–91. https://doi.org/10.1177/014107689208501111.

  1. ‘Eu penso que o essencial para este problema é uma consciência global, uma visão que transcenda nossas identificações exclusivas com os agrupamentos geracionais e políticos nos quais por acidente nós nascemos. As soluções para estes problemas requerem uma perspectiva que inclua o planeta e o futuro, porquê nós estamos todos juntos nesta estufa.’↩︎