Episódio 4 Para onde vou?
A maternidade vem carregada de demandas, desafios e incertezas. Nossa vida muda tanto que não conseguimos nos lembrar como éramos antes e o que fazíamos com o tempo que nos sobrava. Seria intuitivo pensar que mães são menos produtivas ou que o mundo do trabalho pode ser menos importante após o nascimento dos filhos. Discordo desse pensamento que, por vezes, domina nossa sociedade e acaba norteando algumas políticas públicas e corporativas.
Quando minha primeira filha nasceu, nasceu uma nova Renata. Uma Renata mais atenta ao mundo e mais responsável com seu entorno. Nasceu a Renata que queria mudar o mundo! Sei que esse memorial é profissional, mas não consigo dissociar os papéis sociais que exerço da minha emoção e dos meus sentimentos. A Renata-mãe, aos 30 anos, acreditava que conseguiria mudar o mundo. Tornou-se mais rebelde às instituições, mais crítica e produtiva. Foi um momento da minha vida muito significativo na transformação permanente que vivermos.
Aos 40, estou ainda pensando em mudar o mundo26. Mas não me vejo como alguém que pode mudar o modo de vida atual. Vejo-me como alguém que pode manifestar-se de maneira insubordinada aos princípios desse modo de vida e provocar a reflexão.
Eu professora
“Para ensinar, necessita-se de Eros” Platão
A vida é cheia de mudanças e escolhas. Cada escolha que fazemos nos impacta, impacta quem está no nosso entorno e aqueles que encontram-se muito distantes de nós. Chegar à minha quarta década de vida tem sido uma experiência diferente daquelas vividas anteriormente. Aos 30, pensamos muito mais no resultado material e imediato do trabalho que desenvolvemos do que no singelo incremento potencial que cada reflexão pode trazer. Aos 30, pensamos que podemos mudar o mundo. Aos 40, temos certeza que não mudaremos o mundo, mas que podemos trabalhar para promover o questionamento, a reflexão e a discussão; para eliminar a dicotomia das argumentações; e para que, aos poucos, possamos ver mudanças nas pequenas escolhas cotidianas que fazemos e que as pessoas próximas fazem27. É muito mais um ato de resistência do que uma ação efetiva e produtiva, com resultados tangíveis.
Tenho também refletido sobre meu papel no mundo como pesquisadora e como docente. A ideia de ciência fundamentada no princípio da separação entre o sujeito e o objeto é outra questão que tem me motivado a refletir sobre minha carreira como pesquisadora. Discussões contemporâneas sobre ciência têm apresentado a necessidade de descontruir o positivismo, a objetividade e o funcionalismo hegemônicos na produção de conhecimento. O observador não consegue isolar-se, como sujeito, do objeto investigado e, nem sempre, é possível quantificar os fenômenos naturais e humanos28.
Hoje vejo convergências muito grandes entre minhas críticas como pesquisadora ao processo de produção do conhecimento e como professora, em relação ao processo de difusão desse conhecimento. Tenho pensado no quanto as relações de poder influenciam os fenômenos que investigo, assim como os estudantes em sua aprendizagem.
“O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa somente como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considera-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.” Foucault (1979) , p.8
Quando penso no leiaute das salas de aula de uma escola tradicional, penso em carteiras enfileiradas, inibindo a interação dos estudantes (pois por meio da interação pode haver estímulo à reflexão) e promovendo o distanciamento entre o professor e o aluno29. O espaço é concebido para fortalecer esse distanciamento. É concebido para que os alunos apenas se concentrem em absorver as informações apresentadas. Os instrumentos de avaliação são concebidos para que os alunos reproduzam o que absorveram. E o resultado é mensurado de maneira objetiva, quantitativa e funcionalista, realimentando a valoração da tangibilidade do fim e desvalorizando a complexidade do caminho. E assim segue a humanidade…30
Há algum tempo, tenho repensado minha atuação como docente, tentando me posicionar como aquele que conduz o estudante à reflexão e não como aquele que apresenta a informação. Sinto-me como uma curadora de instrumentos que promovam o pensamento crítico de forma coordenada e que permitam a efetiva construção do conhecimento. Meu maior desafio como docente é conduzir o estudante ao lugar de protagonista no processo de ensino-aprendizagem. Parece simples, mas não é.
Desde que mudei de departamento, tenho proposto a oferta de disciplinas31 que contemplem temas sobre os quais não tenho domínio. São temas relacionados aos conceitos, métodos e discussões que faço como pesquisadora, mas que ainda não fizeram parte dos meus momentos de estudo. O bacana dessa oferta não é só eu efetivamente ter que estudar. É romper a distância que o saber, como instrumento de poder, pode promover entre professor e estudante. Ofertando cursos sobre temas ainda não explorados por mim, aprendo junto com os estudantes. Mesmo em um contexto remoto, tem sido muito gratificante perceber os avanços que tenho conseguido, especialmente em relação à motivação e à promoção de autonomia na aprendizagem, por meio dessa ruptura.
A subordinação elimina a liberdade e a autonomia. Mas em nome da liberdade centrada nas escolhas individuais, elimina-se a capacidade de decisão coletiva, de olhar para o outro, de reduzir as desigualdades. Por outro lado, as decisões coletivas limitam a liberdade do indivíduo em suas escolhas.
Visando também estimular a autonomia na aprendizagem, tenho buscado a gamificação. O uso de jogos possibilita colocar o indivíduo em uma posição daquele que toma decisão e que é influenciado pela própria decisão. Em uma das atividades apresentadas nas figuras a seguir, jogamos o Urbalog. É um jogo desenvolvido pela Universidade de Lyon e distribuído para tradução e implementação tanto no contexto educacional como em situações de construção coletiva de participação social.
Um dos aspectos mais interessantes é que as decisões individuais sobre os investimentos na cidade, podem ser não resultar em benefícios individuais. E decisões coletivas, após negociação e concenso, são normalmente mais benéficas para todos.
Outra abordagem muito interessante que realizei em sala de aula foi permitir que os estudantes façam trocas. Troca de informações, de conhecimento, de percepções. As fotos a seguir foram parte de uma atividade de caracterização dos modos de transporte para movimentação de cargas. Seriam algumas aulas expositivas, com pouca capacidade de interação até que os estudantes conseguissem autoconfiança suficiente para participarem de maneira ativa.
No lugar das aulas expositivas, comprei cartolinas, canetinhas e cola, imprimi termos e definições que eu consideraria na caracterização dos modos de transporte, recortei e misturei. Os estudantes precisaram utilizar os termos e definições para compor um raciocínio coerente que seria considerado em uma disputa posterior entre os grupos sobre o que aprenderam. Dimensionei dois encontros para a atividade e ficamos um mês construindo os elementos que resultariam no entendimento das características técnicas e tecnológicas, de condicionantes operacionais, dos desafios do planejamento, das vantagens e desvantagens de cada modo.
Ao final, a disputa não seria necessária para promoção da aprendizagem, mas foi um fechamento super divertido. Os estudantes pesquisaram, discutiram o que entenderam, questionaram e eu segui como aquela que coordena o processo de aprendizagem e instiga a reflexão, redirecionando o raciocínio quando não coerente.
Essas são algumas experiências que pretendo amplificar e levar para outros cursos e contextos. Infelizmente o ensino remoto traz outros desafios, mas espero que possamos reaver as relações interpessoais como apenas a proximidade pode promover.
Tenho estudado muito menos do que gostaria, mas busco todos os dias novas referências para mudar, sempre, a Renata-professora (Filatro and Cavalcanti 2018; Bacich and Moran 2018; Bazzo and Pereira, Luiz 2013b; Brown 2017b, 2017a; Bueno 2018; Miranda 2019; Svinicki and McKeachie 2013; Bacich, Neto, and Trevisani 2018; Burke 2015; Horn and Staker 2015).
Faço ainda menção a um fato recente: foi necessária uma pandemia para que nós, como família, decidíssemos mudar as crianças de escola; do ensino tradicional confessional para um projeto maravilhoso!32
Fecho essa seção com uma revisão da frase de Platão33.
Para APRENDER, necessita-se de Eros. Renata
Eu pesquisadora
“O conhecimento objetivo necessita do sujeito, da interação subjetiva e também de projeções das estruturas mentais de sujeito. (..) O conhecimento é sempre tradução e reconstrução do mundo exterior e permite um ponto de vista crítico sobre o próprio conhecimento. (…) o conhecimento, sem o conhecimento do conhecimento, sem a integração daquele que conhece, daquele que produz o conhecimento é um conhecimento mutilado.” Morin and Terena (2000), p.53
Não quero fechar a discussão dos meus caminhos futuros com certezas! Quero apenas colocar reflexões e desejos que pretendo considerar como pano de fundo ou condicionante das minhas atividades de pesquisa e docência nos próximos anos. A única certeza que tenho é que vou buscar o que me faz feliz e que me completa. Ou seja, eu faço parte da produção de conhecimento!
A cidade
As cidades são o principal habitat para os seres humanos em todo o mundo, e a urbanização é um processo em evolução. A lógica da vida urbana é apoiada pela necessidade de coesão nas interações humanas, onde atividades essenciais, como moradia, comércio, trabalho e educação, são acessíveis para todos; no entanto, a distribuição territorial das funções urbanas e da respectiva conectividade não é equitativa. Os sistemas de uso do solo e transportes são recursos valiosos para conectar pessoas e atividades, desempenhando um papel essencial no desenvolvimento de cidades sustentáveis.
Pesquisas e formulação de políticas em relação à conectividade das funções urbanas têm sido apoiadas pelo planejamento tradicional do transporte com base na demanda e modelagem da oferta. Essa abordagem tem focado em aumentar a velocidade, eficiência, conforto e segurança na mobilidade das pessoas e das mercadorias. Embora esse paradigma defenda o transporte como elemento do ambiente urbano, ele não considera necessariamente componentes estruturais urbanos ou a dimensão humana ao projetar nossas cidades. Além disso, os desafios contemporâneos global – mudanças climáticas, transformação tecnológica disruptiva, migração global e, por fim, as pandemias do SARS-CoV-2 – dificultam a implementação de modelos de previsão de demanda; essas mudanças afetam a estrutura econômica, a dinâmica urbana, os padrões de consumo, a direção e a intensidade dos movimentos, comprometendo a previsão no curto prazo. Surgiram discussões epistemológicas recentes sobre a necessidade de estruturar uma abordagem mais abrangente para investigar sistemas urbanos. Como resultado, vivemos a possibilidade da mudança de paradigma no planejamento orientado à acessibilidade, que se concentra na integração de subsistemas como localização de atividades, uso da terra e estrutura de transporte no planejamento urbano.
“Devemos complexificar o modo de conhecimento (…)” Morin and Terena (2000) p.59.
Tenho refletido sobre como mudar a cidade e como acontecem as decisões individuais e coletivas. Temos inúmeras perspectivas para explorar o mundo, os fenômenos naturais, sociais e suas interações e o respeito à complexidade dos fenômenos tem aparecido de forma recorrente nas minhas explorações.
Acredito que estejamos caminhando para uma revolução epistemológica também da geografia. Quem sabe não teremos, num futuro próximo, uma escola de Geografia Complexa. Dissociar os fenômenos naturais e humanos do espaço onde ocorrem é perder a essência constitutiva diversa e conectada. Nada mais geográfico do que a ideia de que o pensamento complexo "não é um conceito manipulável, é o de integrar em si próprio uma visão que busca multidimensionalidade, a contextualização. Morin and Terena (2000) p.59
O conhecimento teórico e a modelagem são essenciais para a investigação das cidades. No entanto, soluções inovadoras e em escala humana devem considerar as melhores práticas e a implementação de laboratórios vivos. Essas abordagens tornaram-se alternativas à generalização das teorias, a fim de abordar as especificidades contextualizadas da tomada de decisão e política. O prêmio Nobel de Economia 2019, atribuído a Abhijit Banerjee, Michael Kremer e Esther Duflo, transformou o papel da ciência no apoio às políticas públicas. Traz luz à necessidade de implementar projetos que contemplem evidências comportamentais de experimentos reais à ciência. Experimentos randomizados, realizados por meio de estudos piloto, são, de fato, um campo fértil de desenvolvimento do conhecimento no acesso a oportunidades. Nesse contexto, em consonância com o conhecimento teórico, pretendo, no longo prazo, investigar a dinâmica urbana relativa ao acesso a oportunidades na cidade por meio de laboratórios vivos.
Ciências de dados, pós-verdade e difusão do conhecimento
Outra questão que tem me instigado é: como difundir conhecimento científico e transferir tecnologia. Em trocas recentes com laboratórios internacionais, percebi que, no exterior, não existe distinção entre atividades de pesquisa e extensão como há no Brasil. Pelo contrário, a difusão do conhecimento e a transferência tecnológica, em alguma dimensão, fazem parte da pesquisa científica.
Ainda, vivemos em um mundo que produz dados de todos os tipos em tempo real. Ainda não conseguimos enxergar todo o potencial analítico dessa geração de dados como instrumentos de gestão e suporte à decisão, mas já são evidentes os riscos que corremos em relação à privacidade, a indução do comportamento humano e, em especial, em relação às fakenews e pós-verdades. Nesse contexto, a difusão do conhecimento científico se torna vital para que a humanidade consiga manter algumas conquistas, desconstruir alguns pré-conceitos e paradigmas e seguirmos melhorando a vida das pessoas.
Sou a favor dos movimentos de Open data e Open Science. Espero que possamos construir algorítmos não para disparar notícias falsas em tempo real, mas para que sejam feitas análises da produção acadêmica (o que seria pelos pares, mas com suporte tecnológico), com mais agilidade e responsividade para a sociedade.
Tenho enxergado alguns caminhos para explorar novas possibilidades:
A difusão de conhecimento deve começar entre os pares. Tanto no programa da UFMG como no do CEFET, sinto que não há um entendimento coletivo do que cada pesquisador ou grupo desenvolve em seu trabalho acadêmico. O mais comum é não dividirmos sala de aula e não consolidarmos parceria de pesquisa entre os pares. Quero promover seminários acadêmicos que permitam a troca de ideias, experiências, êxitos e frustrações no desenvolvimento da pesquisa. Inicialmente, esses seminários seriam internos, mas com o tempo, podemos expandir para a comunidade do CEFET-MG e, a posteriori, abrir para o público em geral.
Recentemente fui convidada para assumir a função de co-tutora do Programa de Educação Tutorial da Administração (PET-adm). É uma equipe muito engajada e responsável. Os alunos são muito autônomos e os projetos devem contemplar os eixos ensino, pesquisa e extensão. Apesar da minha recente transição de docente para docente-pesquisadora, penso que a extensão tenha uma importância muito grande no contexto brasileiro. Entretanto, precisamos observar as demandas sociais, locais e regionais, para que efetivamente consigamos reduzir as distâncias entre o entendimento coletivo e individual de pessoas fora de um determinado campo de conhecimento e os especialistas. Vejo um enorme potencial no PET-Adm para o desenvolvimento e implementações que consigam difundir o conhecimento de maneira mais universal e efetivamente promover a transferência tecnológica.
Tenho investido tempo de estudo para apreender instrumentos relacionadas à ciência de dados. Surpreendentemente, mesmo fundamentada em métodos mais quantitativos, tenho encontrado vários caminhos da uso de dados como instrumento de redução das desigualdades e promoção de discussões sobre diversidade e inclusão. O Twitter tem sido uma ferramenta fantástica para que eu explore as comunidades pelo mundo em suas atividades e me aproxime, mesmo que virtualmente, de pessoas bem bacanas!
Temáticas a serem exploradas
Registro aqui também alguns assuntos que estão na lista de estudos, certamente por conta das construções e transformações da Renata-mulher-mãe-professora-pesquisadora-dona de casa-roqueira-cervejeira-…:
Cidades e complexidade
Inferência causal
Backcasting
Storytelling
Análise de dados
R, Python e Julia
Simplesmente EU
Eu tenho apenas um desejo pessoal: colocar-me, pelo menos eventualmente, à frente de todas essas atividades deliciosas que a carreira como docente e pesquisadora me proporciona e cuidar de mim e dos que amo. Se eu conseguir mais equilíbrio entre mim, minha vida pessoal e profissional, não preciso de mais nada! Simples assim!34 Quero reduzir distâncias entre todas as Renata que habitam em mim!
E trabalhando o desejo de ver isso acontecer em terapia.↩︎
Próximos são aqueles que dividem o coração conosco, mesmo que distantes em termos geográficos.↩︎
Lembrando: sou engenheira! Treinada para solucionar problemas com rapidez e com o menor custo possível.↩︎
Essa é a primeira vez neste documento que utilizo a palavra aluno. Estou tentando tirá-la do meu vocabulário como parte do processo de desconstrução desse modelo de educação centrada no ensino e no docente.↩︎
Para onde, não sei. Mas tenho muito medo dos caminhos que construímos para nós mesmos com esse padrão.↩︎
Meu sonho é fomentar a indisciplina, a crítica e desestruturar a educação de um modelo preso em grades curriculares.↩︎
Audácia a minha! 🙃↩︎
OU NÃO!!!!!! 😱↩︎