Apêndice B Manifesto por um mundo melhor

“(…) seres humanos são seres sociais por natureza e que aquele que não for capaz de viver em sociedade ou que se sente autossuficiente, ou é uma besta, ou um Deus.” Aristóteles (384-322 a.C.)

O PAPEL DA ESTRUTURA URBANA EM TEMPOS DE COVID-19

O conceito de território é bem mais antigo do que aquele definido por Frederich Ratzel no início do século XX. Segundo Ratzel, o território se caracteriza pelo processo de construção e transformação do espaço geográfico e pela imposição de poder, idealizado por meio do conceito de um Estado que transcende aspectos puramente legais e é estruturado sobre as relações entre o espaço e a sociedade que nele habita. Entretanto, o processo de construção da territorialidade nem sempre está relacionado ao espaço; pode estar relacionado a redes que interligam agentes e fluxos, apresentando importantes variações espaço-temporais e se estabelece em relações naturais, políticas, culturais, sociais, econômicas, militares, dentre outras. Se pensarmos no mundo contemporâneo, o conceito de território está presente na maior parte das relações humanas, distinguindo os indivíduos, processos e ideais conforme o coletivo que representam. Em meados da década de 1970, Yi-Fu Tuan forjou os termos topofilia e topofobia em seu trabalho, estabelecendo a diferenciação conceitual entre espaço e lugar.

Diferentemente do conceito de território, que se relaciona às redes de poder, o lugar é a interpretação individual da localização geográfica sob óticas da percepção humana, de sua representação espacial, e das relações sociais e culturais. Esse conceito está carregado de afetos e desafetos, estabelecidos sob forte subjetividade e diferenciação do indivíduo no espaço geográfico. O lugar está relacionado aos sentimentos que construímos em relação àquele espaço onde passamos por experiências individuais e coletivas. Estar em alguns lugares nos promove alegria, identidade e estima – Topofilia. Em outros, repulsa e medo – Topofobia. Cada um percebe, significa e idealiza o lugar onde habita. Lar é diferente de casa, buteco é diferente de bar e beco é diferente de travessa. Desde os primeiros registros da trajetória evolutiva da espécie humana, a necessidade de interação entre as pessoas é evidenciada. Somos, antes de qualquer imaginário, seres sociais. Território e lugar se complementam em relação à capacidade de entender o espaço como elemento essencial à conformação de relações sociais entre indivíduos. Território e lugar diferenciam os seres humanos por meio de interações coletivas, baseadas em poder, e de percepções individuais. Esses dois conceitos fundamentam a construção do habitat humano contemporâneo: a cidade. Na cidade, tanto as funções urbanas como o espaço geográfico construído e transformado representam aqueles que nele habitam. Os primeiros assentamentos humanos conhecidos, segundo alguns historiadores, estão localizados na antiga mesopotâmia e surgiram sob domínio dos sumérios há cerca de 5,5 mil anos. Por sua vez, as cidades antigas mais conhecidas na atualidade foram construídas durante o império romano. Tanto as cidades sumérias como as romanas tiveram gênese comum: a necessidade de interações humanas relacionadas às trocas de bens, às práticas religiosas e culturais e à necessidade de administração centralizada e de fortificação. Na área central das cidades estavam instalados o fórum, o mercado e a igreja, diferenciando o espaço urbano conforme sua finalidade e importância.

O surgimento das cidades também é marcado pelos primeiros registros de especialização do trabalho e da capacidade de acúmulo de excedente. Nesse contexto, o modo de vida urbano se consolida, marcando de maneira definitiva as relações econômicas, sociais, tecnológicas e ideológicas. A diferenciação do espaço, somada à diferenciação entre cidadãos conforme sua competência e capacidade de acumular riqueza, sintetiza a construção humana do conceito de território e das relações de poder. A percepção dos indivíduos sobre si e sobre os outros, passa a depender de um imaginário social. Como exemplo, as regiões periféricas das cidades recebem menor importância na sociedade, assim como seus habitantes. No contexto urbano, a humanidade se desenvolveu e consolidou o modo de vida contemporâneo, sustentado pela disponibilidade de recursos naturais e pelas relações sociais e econômicas, intrinsecamente desiguais. Em 2020, cerca de 50% da população global vive em áreas urbanas e 86% dos brasileiros habita cidades. Além disso, experimentamos taxas de urbanização cada vez mais intensas. A necessidade de interação humana marcou eras e foi responsável por diferentes inovações ao longo de nossa história. Vencer as impedâncias promovidas pela distância tem sido um gatilho importante para concepções tecnológicas que mudam nossas vidas há bastante tempo. Diferentes tecnologias de transporte se consolidaram até os dias atuais, mas o advento das máquinas a vapor e, posteriormente, de motores a combustão e elétricos, foram as grandes inovações que possibilitaram o incremento da velocidade nos deslocamentos das pessoas. As ferrovias começaram a ser desenvolvidas na segunda década do século XIX, e perduram até os dias atuais, sem mudanças estruturais significativas. Essa tecnologia foi responsável pela expansão da ocupação das áreas interiores de diferentes países e até hoje é um meio de transporte bastante adequado para diferentes ligações regionais e urbanas. Ao longo do século XX, presenciamos o advento e a popularização dos automóveis, da aviação civil e dos trens de alta velocidade. Tornou-se possível deslocar pessoas por meio aéreo com velocidade superior a 1000 km/h e terrestre até 300 km/h. A velocidade, sempre sedutora, ainda promove desafios e inovação, como a concepção do Hyperloop, visando, cada vez mais, reduzir as distâncias. Além da expansão regional, os transportes delinearam cidades em todo o mundo, possibilitando maior velocidade nas conexões entre as pessoas e a que os indivíduos poupem energia, pois não precisamos caminhar para chegar aos nossos destinos. Rapidamente os automóveis se tornaram símbolo de status e começaram a dominar as cidades. Ao final dos anos 1910, os cidadãos, que já conviviam há algum tempo com diferentes veículos de tração animal, como charretes e carruagens, estavam acostumados a compartilhar o espaço urbano, favorecendo a interação, até então predominante. A difusão dos automóveis foi um fenômeno bastante disruptivo e, em pouquíssimo tempo, os automóveis já regiam a ocupação dos caminhos nas cidades. Como símbolo dessa mudança, destaca-se o termo “jaywalking,” concebido pelos norte-americanos que se referiam ao pedestre que atravessa alguma via fora das interseções controladas; um termo pejorativo que coloca o pedestre em posição inferior aos carros. Esse termo resiste ao tempo, assim como a hegemonia dos automóveis sobre as cidades brasileiras, em contraste à velocidade naturalmente limitada de homens e animais ao se locomoverem. Como consequência do encantamento promovido pelos automóveis e pela velocidade, urbanistas idealizaram e fomentaram a construção de cidades especializadas, com áreas dedicadas a funções específicas, como zonas hospitalares e industriais. Essa linha de pensamento do urbanismo concebeu e remodelou as cidades para que o automóvel se tornasse um protagonista no modo de vida urbano. As cidades foram adequadas à velocidade de veículos automotores (60 km/h), possibilitando a ocupação urbana de maneira cada vez mais espraiada e menos adensada, mas dependente da motorização para acesso a funções básicas, como trabalho, saúde e a aquisição de alimentos. Algumas cidades, como Belo Horizonte, cuja gênese ocorreu no início do século passado, tiveram projetos nos quais os deslocamentos eram favorecidos em detrimento das características do sítio natural, com a concepção de redes viárias ortogonais e sobrepostas aos cursos d’água naturais. Essas diretrizes para a construção das cidades foram vistas, durante algumas décadas, como sinônimo de modernidade e progresso.

Também ao longo do século XX e no contexto brasileiro apenas ao final desse período, concebemos um modelo de produção e consumo em escala global, viabilizando etapas de produção, de um mesmo produto, geograficamente separadas por mais de 10 mil quilômetros. Por viável, entende-se a capacidade de gerar remuneração do capital de investidores, distantes do valor promovido pela manufatura e atentos ao dinamismo do mercado financeiro, desconsiderando as demandas de recursos naturais e sociais para que esse modelo se sustente. A coesão de funções promovida pelo contexto urbano e pelas redes regionais de produção e consumo determina o modo de vida contemporâneo. Cada indivíduo constrói sua percepção de lugar e se adapta à territorialidade dos espaços onde circula e se adapta às diversidades. Entretanto, esse modo de vida está ameaçado por mudanças estruturais, em diferentes dimensões, que permeiam nossa existência sem que consigamos parar para entendê-las, criticá-las, mitigá-las, refutá-las ou aceitá-las. Parte dessas mudanças é possibilitada por revoluções tecnológicas que permitem interações entre os meios físico, biológico e virtual, tornando a distinção entre o humano e o natural, entre o urbano e o rural, cada vez mais nebulosa.

Esse processo é denominado Quarta Revolução Industrial, e nos leva a não depender de limites geográficos para que haja interações entre pessoas, além da substituição de diferentes funções por máquinas “inteligentes.” Com as possibilidades mais contemporâneas de trabalho sob demanda, teletrabalho e comunicação virtual, a relativização do espaço geográfico se torna realidade e temos a sensação de estarmos sempre conectados, atendendo um desejo intrínseco do ser humano. Por outro lado, o meio natural se manifesta de maneira intensa e contrária à velocidade promovida pela motorização dos deslocamentos e a digitalização da comunicação. Estamos vivenciando eventos climáticos extremos que comprometem tanto a qualidade de vida das pessoas, como o enriquecimento dos detentores do capital. Chuvas catastróficas e o aquecimento de algumas áreas do planeta são fenômenos já frequentes em nosso cotidiano. No início deste ano nos deparamos com um novo e imediato desafio advindo das relações humanas com o ambiente natural: a pandemia provocada pela disseminação do novo coronavírus em escala global. Esse fenômeno privou e tem privado os diferentes indivíduos de sua liberdade física de ir e vir. Diferentes conceitos como distanciamento social, isolamento social e lockdown invadiram nossas vidas e resultaram na redução dos deslocamentos e da interação humana, em diferentes intensidades e escalas. É um fenômeno extremo que muda, de maneira radical o nosso modo de vida. Há quem diga que essas mudanças são transitórias e que retornaremos em breve à “normalidade”; outros alegam que o distanciamento é desnecessário e traz mais prejuízo do que benefícios à sociedade.

Mas frente ao desconhecido comportamento do SARS-CoV-2 e seus efeitos sobre o Homo Sapiens, a maior parte das nações optou por preservar a vida humana em detrimento de outros valores até então soberanos. Essas mudanças ocorrem na estrutura econômica, na dinâmica urbana, nos padrões de consumo, na direção e na intensidade dos deslocamentos, na liberdade dos indivíduos, na percepção de felicidade, no meio ambiente, nas priorizações cotidianas, na fé. São alguns exemplos de dimensões sobre as quais a pandemia tem causado disrupção sobre as quais não conseguimos inferir a dimensão das consequências nos médio e longo prazos. As mudanças na sociedade advindas da pandemia COVID-19 As repercussões econômicas e demográficas advindas da difusão do novo coronavírus dependem das fragilidades e vulnerabilidades do modelo social, econômico e geográfico atual. Um dos inconvenientes da crescente globalização é a impossibilidade de deter a rápida difusão internacional de novas doenças. O mundo é conectado em escala global nos meios físico e digital e a difusão do vírus é bem mais rápida em regiões com maior densidade populacional e, portanto, essa característica torna seu impacto mais significativo nas comunidades urbanas. Sacrifícios econômicos estão sendo necessários em todo o mundo, mudando a dinâmica, pelo menos de maneira transitória, dos processos de produção e acumulação de capital. Como reduzimos o consumo do não essencial, estamos vendo as economias de todo o mundo em declínio. Materiais hospitalares necessários à manutenção da vida dos indivíduos acometidos pelo vírus estão em falta em diferentes nações e o suprimento desses componentes, com produção centralizada na escala global, é disputado por países detentores do capital. Diferentes atividades laborais foram limitadas pelo distanciamento social. O comércio e o setor de serviços, ainda bastante dependentes do capital humano, sucumbiram ao fechamento de lojas físicas, resultando na redução de remuneração de seus funcionários, na imposição de férias durante a pandemia e em demissões. Pequenos empresários e trabalhadores autônomos, formais e informais, se viram sem meios de produzir durante o distanciamento social, sendo obrigados a encerrar suas atividades de maneira definitiva. Em uma escala global e sistêmica, os valores que o capital pode produzir estão sendo comprometidos por uma insuficiência de demanda efetiva em função da pandemia e da consequente capacidade de adaptação do ser humano. Também em razão do distanciamento social, o controverso salário mínimo universal volta à discussão em diferentes países, mesmo naquelas nações onde o Estado tem se posicionado de maneira a permitir plena liberdade dos cidadãos, com o argumento de que a rede de proteção, que em outros contextos é pública, deveria ser organizada individualmente. Entretanto, como o acesso às oportunidades não é equitativo, muitos trabalhadores encontram-se em situação de vulnerabilidade por não conseguirem rendimentos suficientes para o essencial ao cotidiano e, menos ainda, para organizar recursos para sua proteção em situações adversas. Mesmo com algum apoio comunitário, o acesso a recursos básicos para essa população vulnerável ainda é insuficiente. No Brasil, os trabalhadores informais, que representam mais de 40% da população brasileira com alguma ocupação, já não contavam com nenhuma rede de proteção social que mitigasse os efeitos da cessão de produção em situações de desemprego, doença ou incapacidade permanente de trabalho. Durante o distanciamento, o governo federal propôs a distribuição de recursos para subsistência dessa população vulnerável, mas o acesso ao auxílio tem sido comprometido pela invisibilidade desses trabalhadores e famílias. Esses “cidadãos” ocupam territórios necessários ao modo de vida urbano, mas são invisíveis perante a estrutura formal da sociedade. Essa invisibilidade tem consequências severas para todos, inclusive para o contribuinte que entende se beneficiar dessa situação. Intensificando a precarização do trabalho informal, somam-se as crescentes atividades relacionadas à gig economy.

Esse último conceito é parte do trabalho sob demanda e é caracterizado pelo uso de tecnologia para que trabalhadores sejam conectados a demandas temporárias, e se tornem responsáveis pelo próprio gerenciamento de suas competências, tempo e rendimentos. Um exemplo atual dessa relação econômica são os motoristas de aplicativos para transporte de pessoas e entregas que se encontram disponíveis para quaisquer atividades geradoras de rendimentos, mesmo que precárias, devido à escassez de empregos no Brasil. Parte desses trabalhadores recorreram a essa atividade por perderem renda com o distanciamento. No contexto da pandemia, a entrega domiciliar de produtos essenciais, como itens de supermercado, medicamentos, refeições prontas, passou a ser um serviço essencial e que possibilita que parte dos cidadãos possa permanecer em casa. Para que a entrega domiciliar de bens de consumo essenciais aconteça, é necessária uma cadeia produtiva extensa, quando não global, que abasteça os centros de distribuição e o varejo tradicional com alimentos, produtos de higiene pessoal, limpeza e medicamentos. Apesar de possibilitar a manutenção de algumas cadeias produtivas e parte do distanciamento social por meio do abastecimento em domicílio, apenas os grupos familiares pertencentes a extratos mais favorecidos e com manutenção da renda podem se beneficiar da entrega domiciliar. Essa situação aumenta as desigualdades na cidade e a população pobre, já segregada em função de atributos espaciais e econômicos, é aquela que precisa escolher entre: aderir ao distanciamento social, sem rendimentos e com riscos de comprometimento da subsistência familiar ou de demissão; ou correr o risco de contaminação visando manter a atividade laboral. Nesse último caso, parte importante desses trabalhadores precisa ainda exercer deslocamentos por transporte coletivo, em veículos lotados, gerando a aglomeração de pessoas indesejada na contenção da difusão do coronavírus. Apesar de toda tecnologia e automação de serviços possibilitada pela internet, pela inteligência artificial e pela aprendizagem de máquinas, ainda precisamos que haja caminhoneiros transportando mercadorias nas estradas, funcionários trabalhando em centros de sortimento, motofretistas realizando a entrega nas residências e motoristas conduzindo ônibus pelas cidades. A demanda por transportes, meio que viabiliza a conectividade entre funções urbanas, está mais evidente para a sociedade devido às mudanças relativas aos meios de deslocamento e às formas de consumo. Essa demanda é consequência das distâncias entre moradia e trabalho, produção e consumo, resultantes das escolhas territoriais e econômicas que fizemos ao longo da história. O avanço do COVID-19 exalta as desigualdades das cidades de classe, gênero e raça. Para suprir a necessidade de interação e manter algum alinhamento com a vida cotidiana, uma parcela de nossa sociedade tem experimentado a digitalização plena do meio de trabalho, estudo e convivência social.

A cidade se dividiu em novos territórios, dos mais e dos menos privilegiados, em função de sua atividade profissional e das novas condições de acesso a bens e serviços. Nem todos conseguem substituir o trabalho por teletrabalho devido a: desigualdades no acesso a equipamentos e conexões a redes digitais; escassez de recursos financeiros para demandar serviços e produtos essenciais por meio tecnológico; e por precisarem manter os deslocamentos devido a restrições econômicas, pressão do mercado ou por trabalharem em atividades essenciais. Além das desigualdades quanto ao acesso à tecnologia para educação à distância, parte importante dos estudantes não apresenta maturidade e autonomia para se beneficiar de aulas exclusivamente digitais, como crianças na educação infantil e no primeiro ciclo do ensino fundamental, pois a interação social ainda é fundamental para a formação do indivíduo. Territórios de saúde e educacionais, planejados para abranger toda a população, tornam-se mais um instrumento de segregação quando apenas as pessoas que possuem meios de acesso à internet poderão se proteger por meio do distanciamento. De maneira geral, as oportunidades de trabalho, educação, moradia, cuidados com a saúde, lazer, dentre outras, físicas ou digitais, não são distribuídas para todas as pessoas de maneira equitativa, nem mesmo em países mais desenvolvidos, e a estrutura das cidades tem contribuição significativa para manutenção dessa desigualdade.

Segregação e insustentabilidade: as cidades em tempo de COVID-19 Para entender as mudanças que a pandemia tem trazido à vida das pessoas, precisamos retomar os conceitos que fundamentam a estrutura urbana e as relações que estabelecemos com o espaço. A principal função das cidades é, indiscutivelmente, a interação humana, onde o distanciamento social torna-se antagônico e controverso, mas necessário, afastando as pessoas e transformando o espaço urbano. O processo de construção do modo de vida urbano, em escalas intraurbana e interurbana, transpôs os limites da eficiência ambiental, social e econômica. Essas três dimensões são fundamentais para composição do conceito de sustentabilidade e estão comprometidas pelo modo de vida atual. Consumimos recursos naturais acima da capacidade de geração e regeneração do planeta. Ignoramos parte importante dos cidadãos na concepção e implementação de políticas públicas. Concebemos práticas econômicas autossustentáveis, centradas no indivíduo, com expectativa de benefícios imediatos baseados no mérito de cada um e não na diferenciação de oportunidades e na necessidade de que todos tenham acesso ao essencial à vida humana e à dignidade nos médio e longo prazos. Com a pandemia, a conexão veloz entre os cidadãos promovida pela estrutura urbana orientada ao automóvel perdeu espaço para fluxos de bens de consumo – processos de abastecimento e entregas domiciliares – e para as conexões ainda mais imediatas possibilitadas pela tecnologia. Mas essas mudanças não são válidas para todas os cidadãos, em especial, no contexto urbano. As distâncias físicas continuam iguais, pois o COVID-19 não foi capaz de mudar as leis da física. Mas a percepção do distanciamento é bastante diferente entre os habitantes de uma mesma cidade e relacionam-se diretamente ao lugar onde moramos e exercemos nossas atividades e às condições de renda. Quem tem a possibilidade física e financeira de se deslocar com maior velocidade ou não reside nas periferias, estando próximo a equipamentos de saúde, possui maiores chances de receber atendimento médico. A população menos favorecida encontra-se mais vulnerável, tanto pela densidade populacional dos locais de moradia - elevação das taxas de transmissão - como em função das dificuldades no acesso a centros de saúde. Os espaços públicos e comunitários das cidades foram esvaziados. Aquele lugar marcado por memórias afetivas, onde basta “estar,” se tornou apenas um conjunto de construções artificiais e sem propósito para a vida humana. Mesmo que de maneira transitória, o esvaziamento do espaço público traz sensação de insegurança, impessoalidade e medo. Quando o espaço urbano deixa de ser lugar de bem-estar e prazer, novas territorialidades surgem, podendo transformá-lo por meio de referências que provoquem medo, repulsa e, por consequência, desejo de distanciamento. Além da necessidade de distanciamento social para conter a difusão do vírus, precisamos conviver com a perda de identidade individual e coletiva pelo afastamento entre a vida e o espaço urbano. Comunidades periféricas são caracterizadas pela população residente em favelas, assentamentos ou regiões precárias (em relação à urbanização e ao acesso à cidade). Essas comunidades estabelecem territórios próprios advindos das lacunas deixadas pelo poder público quanto à promoção de políticas públicas direcionadas para suas especificidades, apresentando identidade econômica, cultural e social próprias, grande diversidade e uma elevada capacidade de auto-organização para solução de problemas. São territórios ricos e humanizados, mas que usualmente não contam com os aportes financeiros que deveriam ser disponibilizados pelo poder púbico por serem informais.

As evidências até o momento apontam que as classes menos favorecidas economicamente no Brasil, em sua maioria residentes em comunidades periféricas, são aquelas com maiores taxas de mortalidade por infecções do COVID-19. A geografia da contaminação e das taxas de mortalidade é fator determinante nos padrões de difusão e severidade das infecções. No contexto da pandemia, a demanda por suporte do poder público torna-se ainda maior, principalmente devido à cessão de renda. Essas comunidades têm feito pleitos aos governantes das cidades de maneira bastante clara: precisam de barreiras sanitárias para que a “cidade” pare de invadir o “território.” Têm se organizado com centros de isolamento social para aqueles que precisam se afastar de suas famílias. Têm setorizado os cuidados por meio de responsáveis por parte dos domicílios. Entretanto, são pessoas invisíveis ao poder público e aos “cidadãos,” apesar de bastante representativas em termos populacionais, econômicos e sociais. Assim como os trabalhadores da economia informal e da gig economy, que em parte compõe as comunidades periféricas, é mais conveniente ignorar sua existência para a formulação de políticas públicas, mas usufruir do baixo custo social imediato que proporcionam pela informalidade do trabalho, das relações econômicas e das demandas públicas. Mas o preço para a sociedade dessa orientação de políticas públicas priorizando a cidade formal, nos médio e longo prazos, é muito significativo.

Um processo de conformação socioespacial bem característico em países em desenvolvimento é a “favelização” das áreas urbanas. A periferização - denominado espraiamento quando compulsório - é um processo urbano análogo à favelização, sendo caracterizado pela ocupação de áreas periféricas e periurbanas como alternativa aos elevados preços de imóveis nas áreas com maior concentração de oportunidades, e também pelas condições precárias de moradia e serviços essenciais. Cabe destacar que, apesar de possuírem elementos comuns em relação a atributos socioeconômicos, demográficos, de moradia e de acesso a serviços essenciais, as favelas e as áreas periféricas da cidade são bastante diferentes em relação ao acesso à cidade. O espraiamento urbano afeta estratos populacionais da base da pirâmide econômica, afastando-os das funções da cidade, gerando iniquidades quanto ao acesso às oportunidades de trabalho, educação, saúde e lazer, dentre outras. A baixa acessibilidade, como resultado tanto das decisões em relação ao uso do solo nas cidades como à impedância que os deslocamentos promovem, é mais um elemento de segregação. Compondo um ciclo negativo, tem-se a redução de demanda por transporte público coletivo, intensificando a redução de receita desses sistemas – advinda da tarifa – já identificada em diferentes cidades brasileiras antes da pandemia.

Como resultado, há a supressão de oferta, gerando riscos importantes de supressão permanente do transporte de maior capacidade, tornando-se uma lacuna de serviços essenciais para a sociedade. Existe, portanto, o risco de conformação de uma nova territorialidade informal para suprir a demanda por transporte. Essa supressão, coordenada com a concentração espacial de oportunidades, vai acentuar as iniquidades em relação à acessibilidade urbana. Reflexões positivas em tempos de pandemia O COVID tem forçado as pessoas a realizar funções básicas de forma diferente. A forma não necessariamente implica em mudanças que tragam melhoria para as cidades. O meio apenas facilita ou dificulta como as atividades são desempenhadas, mas ainda exercer nosso papel como provedores e consumidores de serviços e atividades básicas à vida humana, como a moradia e alimentação. A maior parte dos alimentos consumidos nas cidades são produzidos fora dela e precisam ser transportados para que estejam disponíveis. Precisamos recorrer a atendimento de saúde, mas em momentos de pandemia, uma consulta médica se torna possível e desejável por meio virtual, ainda que apenas para quem possui acesso à tecnologia necessária. Precisamos de acesso à formação educacional de crianças, jovens e adultos que se dá, em sua essência, por meio da troca, mas neste momento, algumas pessoas podem apenas contar com o meio digital para a educação domiciliar. Períodos de exceção como o atual são potencialmente positivos, mesmo com todos os impactos negativos advindos de uma pandemia. É necessário estar aberto a enxergar aspectos positivos em uma crise mundial e, quando possível, podemos considerar a pandemia como um momento de revisitar as escolhas individuais e coletivas que fazemos e repensar diretrizes para gestão de nosso habitat. Padrões de consumo: O excessivo consumismo contemporâneo tem desempenhado um importante papel na degradação ambiental. As mudanças de comportamento em relação ao consumo de bens e serviços não essenciais é um aspecto positivo impactado pelo distanciamento social. Cancelamento de voos, restrições de circulação nas cidades, tanto para contenção da difusão do vírus como devido à redução de consumo, tem contribuído para reduções no consumo de combustíveis fósseis. Consequentemente, diferentes localidades, em escala global, têm experimentado reduções expressivas de poluição atmosférica, sonora e visual. Em várias partes da Índia foi possível, pela primeira vez em mais de 30 anos, foi possível visualizar a cordilheira dos Himalaias devido à redução da poluição atmosférica. A redução da poluição sonora tem estimulado aves, mamíferos e outros animais silvestres a circularem pelas cidades, mesclando natureza e habitat humano. A redução de emissões de gases de efeito estufa impacta positivamente as taxas aceleradas de aquecimento global. Diferentes localidades degradadas pelo turismo estão conseguindo se recuperar frente à ausência de consumidores desse serviço. Estrutura urbana: Barcelona, Londres, Paris e diferentes exemplos pelo mundo formam um conjunto de cidades que estão remodelando o espaço urbano para que haja priorização de pedestres e ciclistas, em um momento de intensa redução de utilização do transporte coletivo. Relações econômicas: A situação de milhares de pessoas que vivem condições de precarização do trabalho e vulnerabilidade torna-se menos invisível com a pandemia. Pela primeira vez na história, o preço do petróleo no mercado internacional atingiu valores negativos, comprometendo toda uma rede de ganhos de capital dependente desse recurso natural. Aspectos individuais: descobrimos novas atividades prazerosas que não teriam sido exploradas em nossa rotina. Descobrimos que somos mais resilientes do que pensávamos e que podemos nos adaptar a cenários muito adversos.

Experimentamos uma desaceleração do ritmo diário, que nos permite tempo e disponibilidade para contemplar, para refletir, para mudar. Valorizamos como nunca profissionais antes não tão valorizados, como profissionais da saúde, entregadores, lixeiros, professores e caminhoneiros. Discussão do papel da tecnologia como solução de problemas urbanos: temos a tecnologia a nosso favor. As demandas advindas do distanciamento social são um catalisador das mudanças tecnológicas que estão acontecendo. Vestimos equipamentos eletrônicos que nos monitoram em tempo real; convivemos com sistemas e objetos construídos com base em inteligência artificial; máquinas aprendem; cidades são inteligentes. Entretanto, nenhum avanço tecnológico conseguiu, até o momento, superar a capacidade cognitiva de seres humanos. Não se sabe como ou quando a espécie humana se tornou “inteligente,” mas entende-se apenas nós possuímos uma capacidade de comunicação que permite imaginar e transmitir informações sobre entidades imateriais, diferentemente dos demais animais. Não existem sistemas de inteligência artificial ou cidades inteligentes que possam tomar decisões em cenários disruptivos visando a adaptação, pois a “inteligência” das máquinas é apenas a capacidade de aprender com o que se conhece, com relações predeterminadas. Apenas o homem tem capacidade de criar, inovar e conceber soluções em contextos adversos. Precisamos refletir sobre o papel da tecnologia em nossas vidas. Dessa forma, a implementação de soluções de tecnologia não são, em si, caminhos para a promoção de qualidade de vida e para a redução de desigualdades. Cidades inteligentes, como exemplo, poderão se tornar espaços sem vida, onde veículos autônomos são prioritários em relação aos pedestres; onde o engajamento cívico reduz-se a solicitar serviços por meio de aplicativos; onde políticas e agentes públicos utilizam algoritmos para justificar práticas racistas; e onde governos e empresas supervisionam o espaço público para controlar comportamentos. Problemas urbanos não são problemas tecnológicos. Soluções tecnológicas são muito bem-vindas para promoção de mudanças na estrutura social das comunidades, mas devem ser encaradas como meio e não como o objetivo finalístico, pois soluções urbanas orientadas à tecnologia tendem a apresentar limitações inatas e a digitalização da sociedade pode fortalecer maneiras específicas de exercer poder e autoridade e, consequentemente, o aumento das iniquidades. O que tem que mudar? Antes do processo de especialização de áreas urbanas, uma diversidade de funções estava disponível a distâncias caminháveis ou cicláveis das residências dos cidadãos. Hoje, o conceito de autossuficiência predomina nas decisões sobre habitação e relações econômicas e sociais.

Buscamos morar em unidades autossuficientes, com possibilidade de armazenar alimentos, de entretenimento, de aprendizagem e de comunicação. Antes, ir às compras era um processo interativo, por meio do qual as pessoas se conheciam, experimentavam lugares comuns, realizavam trocas econômicas e emocionais e compunham comunidades e territorialidades. Hoje, a impessoalidade é favorável ao distanciamento. A Amazon, um dos principais varejistas eletrônicos do mundo, tem pontos físicos de varejo cujo conceito, relacionado ao futuro, fundamenta-se na possibilidade de realizar compras sem nenhuma interação social. Nos perdemos em algum momento! Nos organizamos por milhares de anos em coletivos denominados cidades, visando benefício mútuo, a territorialidade e o pertencimento a comunidades, a eficiência nas relações de produção e consumo, a universalidade de oportunidades e a potencialização da interação social e hoje valorizamos a possibilidade de reduzir a interação social. Precisamos repensar nossas cidades, valorando a humanidade, produzindo centros de desenvolvimento impulsionados pelo conhecimento, pela diversidade, pela curiosidade e pela criatividade. A cidade deve voltar a ser um lugar de construção de relações e interações, antes que nos adaptemos e o distanciamento social se torne uma opção. É importante repensarmos a dicotomia distância-velocidade. A velocidade inibe o olhar, as trocas e as relações sociais. Buscamos exercer nossas funções na sociedade com a máxima produtividade, para o capital e para aqueles que podem acumular riquezas, superando a capacidade de fazer e ser, sem que possamos mudar o tempo. Para sermos produtivos, precisamos ser mais céleres, e a cada incremento na velocidade, viabilizamos maiores distâncias entre nós.

O distanciamento social pode servir como um gatilho para repensarmos o conceito de produtividade de nossas ações individuais e coletivas, com impactos na sustentabilidade. Ao experimentarmos o distanciamento compulsório, associado à desaceleração da rotina, podemos refletir sobre o que é relevante ou não para nosso bem estar. As relações de produção e consumo também devem ser repensadas em relação a essa dicotomia, repensando as possibilidades de produção e consumo locais, menos dispersas geograficamente, permitindo maior interação entre os atores econômicos e menor impacto ao meio ambiente. Na década de 1960, Jane Jacobs inovou a discussão sobre a estrutura urbana, propondo a quebra do paradigma da velocidade e o repensar das cidades como sistemas nos quais indivíduos e grupos representam papéis diferentes e essenciais. Ela propõe que retomemos o foco nas pessoas e que o planejamento seja realizado na escala humana, desconstruindo a ideia de desenvolvimento baseado em separação e especialização dos espaços e na velocidade. Suprimimos espaço para pedestres e ciclistas para suprir a capacidade demandada por veículos.

Planejar uma cidade na escala humana é promover acesso a oportunidades em distâncias caminháveis ou cicláveis. É pensar uma cidade adequada ao modo de vida urbano, mas na qual os deslocamentos sejam possíveis a 5 km/h. Caminhar e pedalar, além de agradáveis para o corpo e para a mente, ajudam a reduzir a degradação ambiental e colaboram para a interação social e para a economia das cidades. Pessoas ativas adoecem menos e são mais produtivas. Esse pensamento tem sido elaborado de maneira mais contemporânea por autores como Jan Gehl, que considera a escala humana como a percepção individual e comunitária em relação ao espaço. Está relacionada com nossa percepção de pertencimento à territorialidade, com o bem estar nos lugares onde exercemos nossas funções como cidadãos. A escala humana depende do engajamento cívico, pois a construção do espaço só pode ser adequada a uma comunidade se todos forem protagonistas e as mudanças comportamentais orientadas à necessidade de promover significado à vida. O poder público e as tendências do mercado imobiliário devem entender as demandas de cada grupo social e não o contrário. Cada cidade tem seus próprios desafios, mas faz-se necessário remodelar espaços com foco na interação humana, respeitando as particularidades, costumes, crenças e cultura locais. Precisamos de atenção para a necessidade de mecanismos eficientes de financiamento, governança e regulação, importantes para a eficácia de ações em um coletivo. A experiência global mostra que áreas urbanas pouco conectadas e, por vezes, subutilizadas podem ser remodeladas para promoção de uma variedade de usos, permitindo maior inclusão social, participação cívica, recreação, segurança e sentido de pertencimento. Quando bem concebidos e geridos, espaços públicos também são instrumentos para promoção de sustentabilidade ambiental, de eficiência dos sistemas de mobilidade, de melhoria dos atendimentos à saúde, atendendo às demandas da sociedade de maneira mais equitativa. Podem agregar valor comercial e benefícios econômicos para cada cidade, assim como estimular o turismo e a sua competitividade. A necessidade de priorizar o capital social nas cidades tem se tornado mais evidente em simultaneidade com a 4ª revolução industrial, por meio da qual incrementos tecnológicos têm proporcionado mudanças importantes no modo de vida das pessoas e, também, na forma como os fenômenos humanos são avaliados e investigados. O planejamento orientado à acessibilidade pode ser um instrumento importante para promoção das mudanças necessárias nesse momento de disrupção. Não é possível pensar a cidade apenas com base nos fenômenos passados. Devemos nos organizar para que possamos ser assertivos na proposição de intervenções públicas com um objetivo futuro comum, orientando a construção de um “novo normal” mais alinhado às necessidades humanas.

Não podemos prever o que acontecerá, mas podemos, ao longo do caminho, preencher as lacunas conceituais, processuais e tecnológicas que surgirem entre o agora e a cidade “ideal.” Precisamos aproveitar este momento estacionário provocado pela pandemia para refletirmos sobre como podemos atuar na constituição de cidades mais humanas. As cidades devem ser capazes de prover necessidades básicas a todos os cidadãos, como alimento, abrigo e segurança, permitindo o desenvolvimento econômico de agentes públicos e privados, limitados pela capacidade de renovação do meio ambiente. As cidades devem ser construções sociais que possibilitem propósito à vida humana de maneira inclusiva e sustentável. Cada cidade deve ser um lugar, onde nos sentimos bem, felizes e saudáveis, com memórias agradáveis e com a vontade de ficar. Deve ser um território ao qual pertencemos; sermos parte e falta.